Contos

Dois velhos (18)

26 dez., 2024
Marco Schetter
Foto Notícia
Enquanto tricotavam, as mulheres distribuíam lembranças na forma de conversas, nem sempre boas, mas todas vivenciadas. A tricotagem ajudava a acomodar o tempo, quanto as lembranças, tudo dependia do rumo da conversa.
A caixinha de fotografias, toda decorada, algumas envoltas em crochê, ficava ao lado dos novelos, às vezes, por entre as coxas. As mais devotas levavam a bíblia para a rodada de conversas, prometiam o céu para as que decidissem descer às aguas. Na verdade, haviam dois grupos de tricotagem, em um deles, era permitido conversas mais picantes, regadas a lembranças do tempo do colegial, se permitiam falar de beijos e abraços, quando a conversa se esticava, algumas até confidenciavam coisas guardadas por anos, pelo menos, escondidas, pelo tempo do marido vivo.
Os presentes recebidos, estes mesmos, eram mostrados como quem mostra medalhas. A conversa sobre os netos, essa era a preferida. Caramelo, deitado ao lado, volta e meia levantava a cabeça, como que concordando com o que era falado. Uma das mulheres era chamada de Maria do Tricô, de tão bem que tricotava. No passado, o sobrenome indicava as profissões, que quase sempre, eram seguidas por todos na família, hoje, não tem mais nada disso, para dizer bem a verdade, as famílias também estão mudadas. Jacob se orgulhava de ter seu sobrenome representado por um brasão, já Joaquim, teve sua vida marcada pelo preconceito, mesmo sendo um descendente de herói, neto de um dos 408 lanceiros, que sobreviveram a guerra dos Porongos, e da trairagem dos comandantes brancos. Os lanceiros derramaram seu sangue pelo Rio Grande, para que todos, indistintamente, respirassem liberdade, já os estancieiros, guerrearam pelo preço do charque, para estes, o destino reservou medalhas, para alguns até, nome de rua, cidades, outros, receberam o selo de heróis nacionais. E o pior, a estória enganada continua a ser contada nas escolas. Joaquim, mal respirava, enquanto falava da Guerra dos Farrapos, às vezes, até secava lágrimas, quando adentrava no ponto da história em que os negros foram desarmados, para depois então serem dizimados. Justiniano tinha razão, justiça e dar a cada um o que é seu, e dignidade, essa, é de todos.
Marco Schettert